Cordéis... lírios... delírios... cor de lírios... Ou apenas mais um lugar (comum?!) onde dou vez e cor aos meus delírios!

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Contornos dissolventes


Já estava anoitecendo e o tráfego aumentava. No sinal fechado algo incomum quebrava a normalidade daquela rua. Não, não é ao trânsito que me refiro, este apesar de maluco já fora incorporado à nossa rotina, já fora acomodado à nossa retina. O que destoava do banal naquela noite tratava-se de alguns círculos e espirais brancas desenhadas no asfalto preto. Mais a frente uma criança, com o rosto quase colado ao chão, estava a rodar enquanto com um giz riscava a superfície do betume ainda quente do calor infernal que fizera àquela tarde. Em meio a confusão do trânsito a criança fazia seus riscos e corria alguns riscos em meio ao trânsito. Em transe, os traços brancos eram desenhados enquanto ela girava em torno de si própria, criando contorno e pintando o chão de branco. Era o início do universo: o escuro do espaço começava a ser preenchido pela explosão do big bang, estrelas brancas se desprendiam da órbita da criança supernova sempre a girar e a girar. Motoristas colocavam a cabeça para fora de seus casulos de metal no intuito de vociferar algum impropério. A criança parecia não escutava o que gritavam, havia apenas vácuo entre elas, e continuava a girar e girar colorindo o seu chão de cometas. Na mão direita empunhava em riste o giz, com a outra mão colada ao peito carregava uma pequena garrafa que continha no seu interior algum solvente. O menino ainda a girar e a girar esforçava-se para marcar sua existência já tão apagada, com essa ação talvez quisesse apenas que o mundo girasse em torno de si por alguns minutos, que alguém o visse,  o notasse. Uma criança negra, vestida aos trapos, cheirando cola queria criar seu próprio universo, ou pelo menos seus próprios contornos, para que assim deixasse de ser invisível. No dia seguinte passei pela mesma rua: não havia mais círculos no chão, as marcas já tinham sido apagadas. Uma tontura me abateu em cheio.

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