Cordéis... lírios... delírios... cor de lírios... Ou apenas mais um lugar (comum?!) onde dou vez e cor aos meus delírios!

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Contornos dissolventes


Já estava anoitecendo e o tráfego aumentava. No sinal fechado algo incomum quebrava a normalidade daquela rua. Não, não é ao trânsito que me refiro, este apesar de maluco já fora incorporado à nossa rotina, já fora acomodado à nossa retina. O que destoava do banal naquela noite tratava-se de alguns círculos e espirais brancas desenhadas no asfalto preto. Mais a frente uma criança, com o rosto quase colado ao chão, estava a rodar enquanto com um giz riscava a superfície do betume ainda quente do calor infernal que fizera àquela tarde. Em meio a confusão do trânsito a criança fazia seus riscos e corria alguns riscos em meio ao trânsito. Em transe, os traços brancos eram desenhados enquanto ela girava em torno de si própria, criando contorno e pintando o chão de branco. Era o início do universo: o escuro do espaço começava a ser preenchido pela explosão do big bang, estrelas brancas se desprendiam da órbita da criança supernova sempre a girar e a girar. Motoristas colocavam a cabeça para fora de seus casulos de metal no intuito de vociferar algum impropério. A criança parecia não escutava o que gritavam, havia apenas vácuo entre elas, e continuava a girar e girar colorindo o seu chão de cometas. Na mão direita empunhava em riste o giz, com a outra mão colada ao peito carregava uma pequena garrafa que continha no seu interior algum solvente. O menino ainda a girar e a girar esforçava-se para marcar sua existência já tão apagada, com essa ação talvez quisesse apenas que o mundo girasse em torno de si por alguns minutos, que alguém o visse,  o notasse. Uma criança negra, vestida aos trapos, cheirando cola queria criar seu próprio universo, ou pelo menos seus próprios contornos, para que assim deixasse de ser invisível. No dia seguinte passei pela mesma rua: não havia mais círculos no chão, as marcas já tinham sido apagadas. Uma tontura me abateu em cheio.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Taxonomia Panfletária



Autistas, geminianos
Fumantes, inadequados
Dementes, anomalias
Impulsivos, desregrados
cidadãos, doido varrido
marginais, reformulados

Pervertidos, anormais
drogados, obsessivos
leprosos, sociopatas
hipertensos, depressivos
aidéticos, bipolares
traficantes, compulsivos

Dementes, esquizofrênicos
Perturbados, bulimíacos,
retardados, catatônicos
paranóicos, demoníacos
masoquistas, serpentários
saudáveis, ninfomaníacos


Cada um em seu lugar
produzido, rotulado,
já com código de barras,
 na seção dos enlatados.
Por aí você encontra
em qualquer supermercado.
Kércio Prestes

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Deformação em despropósitos

Pintura de Marc Chagall

Depois dos 18 anos descobri que não prestava para aprender inglês. Foi aí que resolvi meio sem querer me desalfabetizar em manoelês archaico. Deformei-me em despropósitos... Sou agora rico em ócios e beócios. Virei fazedor de frases, tomando como matéria-prima tolices e vilezas. Tinha o desdom para bocó. Decerto que enquanto isso na faculdade me reprovavam na cadeira da "técnica" porque diziam que o meu saber-não, não servia pra prática, só servia pra pensar o mundo em abstrato. Ufa! Fui salvo pela minha ignorância...


Kércio Prestes

domingo, 30 de outubro de 2011

Metáfora - Gilberto Gil

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora

domingo, 23 de outubro de 2011

Nau dos loucos



O bilhete da viagem
  é imposto por sanção,
por um médico ou grupo,

"expurgando" a nação.
Eram todos ob(de)jetos,
corpos em putrefação:

“Todos a bordo agora,
  a nau logo vai partir.
Não se precisa de malas,
nem destino pra seguir.
O destino a Deus pertence,
cabe a Deus decidir

‘A sorte está lançada’,

no mar que é tão selvagem,
embora os tripulantes
sejam mais com grande margem.
Cairão alguns nas águas
outros tantos pela vargem.

Chegada a hora de ir,

viajarão sem razão.
É sua forma de viver,
  é assim que eles são”
Diz um médico francês,
imponente figurão.
 
Curiosos amontoam-se,
em cima daquela ponte,
observando eles partirem
sumindo atrás do monte.
E a nau que segue cega
(es)vai-se no horizonte...

Kércio Prestes

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Sem título


"Qualquer/ Traço, linha, ponto de fuga/ Um buraco de agulha ou de telha/ onde chova.
 Qualquer pedra, passo, perna, braço/ parte de um pedaço que se mova.
 [...] Qualquer curva de qualquer destino que desfaça o curso de qualquer certeza/ Qualquer coisa/ Qualquer coisa que não fique ilesa/ Qualquer coisa/ Qualquer coisa que não fixe." (Arnaldo Antunes, Hélder Gonçalves, Manuela Azevedo)


Essas linhas mal escritas
carecem de movimento,
ficam sempre a girar,
parecido um catavento,
feitas de “palavras-água”
nunca de cal e cimento.

Não podem se fixar,
são lírios sem raízes,
que voam com o vento,
não se prendem ao que dizes.
Nem tampouco representam,
pois são péssimas atrizes.

Nem procure por tesouros...
No fundo dessa lagoa,
talvez só encontre lodo,
lixo e coisas à toa,
quando muito uns destroços,
avião que já não voa.

Mas caso encontre algo,
não vá logo achando.
Pois que ache, tudo bem,
mas não fique enterrando.
Deixe que voe ou rasteje
por aí perambulando...

Deixe que voe em delírios
pervertendo as fronteiras,
caçoando teorias,
caçando outras besteiras.
Criando lugar comum,
sendo sempre forasteiras...

E ao sentir que achou,
que não firme sentido,
haverá algo surgindo,
que já é desconhecido
e que 




Kércio Prestes

quarta-feira, 30 de março de 2011

Procura da poesia¹

"Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio."

 
Carlos Drummond de Andrade

¹Fora reproduzido aqui apenas um trecho deste poema.